#19 Artesanias Digitais | Encantografando gestos relacionais entre telas
Arte – Rodrigo Sarmento
Por Aline Bernardi
Artista e Pesquisadora. Diretora Artística do Celeiro Moebius, Criadora e Propositora do Lab Corpo Palavra, Mestra em Dança (PPGDan/UFRJ) e Pós Graduada (PCA/FAV)
Por Flavia Dalla
Advogada atuante em Propriedade Intelectual (FGV/Direito Rio), Pós-graduada em Arte e Cultura (UCAM/RJ) e Mestre em Artes Visuais (PPGA/UFES)
Convidamos você a entrar nessa roda de conversa, de pés descalços, coração leve, coluna vertebral disponível para dançar, olhares receptivos e escuta sensível. Fique à vontade para sentir convergências e divergências, pois os modos de pensar-agir com o mundo são heterogêneos e a riqueza de uma partilha está em trocarmos saberes com perspectivas diferentes. Que paisagens deixamos emergir quando partilhamos utopias como estratégia de ativarmos estados de encantamentos, em busca de uma desarticulação da lógica normatizadora que insiste em desencantar o mundo?
Lua Cheia em Aquário
Lunação em Leão
Rio de Janeiro, em uma noite chuvosa
11 de agosto de 2022
Minha querida Flavia,
Escrevo-te sentindo o cheiro da chuva e a força da lua no pico da fase cheia, expandindo sua luminosidade no céu, mesmo encoberta por nuvens carregadas de água. Estamos na Lunação de Leão, signo regido pelo Sol. O momento do pico da fase cheia lunar é quando a Lua está bem de frente pro Sol, como se olhando face a face. A Lua no signo de Aquário traz luz às questões coletivas e, sendo um signo que tem Saturno como regente, me toca nas temáticas do cultivo do tempo, de como tecemos encontros ao longo do tempo, como cultivamos as relações. Parece até a abertura de uma carta de alguém que estuda astrologia. Mas é só uma paquera com as constelações desenhadas no céu e a abertura de um canal sensível para perceber a passagem do tempo.
Desde o início de 2022, trouxe a proposta de nos guiarmos pelas Lunações, na semeadura de nosso Celeiro Moebius[1], esse selo artístico que vislumbrei co-criar; e te convidei para tecer a curadoria. No final do ano passado, iniciamos essa conversa entre modos de ativação curatorial e de processos poéticos coletivos que estejam em ressonância com a abordagem cartográfica do Lab Corpo Palavra[2]. Sua presença chegou me oferecendo um abraço largo e afetuoso, ancorando a feitura coletiva desse chão. Sou uma pessoa movida e motivada pelos processos coletivos, à criação de vínculos, ao tecido de relações com fios de confiança, respeito, amorosidade, de modo que a arte seja impregnada de nossos valores humanos: vida que dá arte e arte que dá vida! E, para que essas relações se estabeleçam com uma ética de cuidado, é necessário desviarmos do imediatismo, de qualquer captura mercadológica que queira cooptar nossas subjetividades ao inconsciente colonial capitalístico (Rolnik, 2018): isso tem me feito pensar-sentir-agir numa artesania de manuseio do tempo.
Venho me questionando como podemos construir outros vínculos de percepção e organização com a passagem do tempo. A proposta das Lunações vem acontecendo desde a Lunação em Áries deste ano, que é quando inicia o ano dentro do calendário astrológico. Que outros calendários podemos nos vincular no dia a dia? De lá para cá, estamos percebendo o quanto essa organização em Lunações altera nossa percepção rítmica com a coletividade: por enquanto estamos ancorando na Lua Nova, os encontros de semeadura das intenções do que desejamos co-criar e mover como coletivo; e, na Lua Cheia, os encontros de criação, que atualmente estão sendo feitos com as residências artísticas virtuais e presenciais dos diferentes núcleos artísticos[3] que temos no selo.
Durante a pandemia[4], senti a provocação da necessidade vital de desacelerarmos a qualidade de tempo urgente, de tempo sucessivo, de uma certa noção de tempo que está dominada por uma lógica de passado-presente-futuro em uma perspectiva linear. Quando realizamos a residência artística Lab Corpo Palavra: coreografias e dramaturgias cartográficas[5], através da Lei Aldir Blanc[6], percebi que essa temática seria um eixo do processo de criação artística. Assim, a dramaturgia da videoperformance Encantografar: estado de verbo desconhecido atrita a relação entre Chronos e Kairós, e cria um arquétipo nomeado de Thonos, como uma entidade que convoca à tonificação da força vital na trama entre duas noções de tempo com qualidades intensivas diferentes.
De um caos-tempo indeterminado, não medível ou capturável em qualquer sequência, ordem ou linearidade, emerge Chronos, instituindo uma geração ordenada, consecutiva, mensurável e progressiva, de certa maneira identificável em uma forma caleidoscópica do simbólico, instituído como convenção por um calendário de sucessões das divindades, já agora organizadas em uma forma sequencial determinada, protegida das atemporais formas e formações do caos. (…) A noção de um tempo que se expressa pela sucessividade, pela substituição, por uma direção cujo horizonte é o futuro marca as teorias ocidentais sobre o tempo e a própria ideia de progresso e de razão da modernidade, ainda que a vivência e a experiência individual da temporalidade sejam problematizadas e arguidas por muitos filósofos do próprio Ocidente. (MARTINS, 2021, pgs. 24-25).
Leda Maria Martins vem em seu mais recente livro, o “Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela” trazendo ótimas contribuições sobre essas questões que estão me atravessando a experiência de ser corpo vivo e pulsante no momento histórico que vivemos, em pleno século XXI e com tantos estímulos visuais, tecnológicos, digitais. E quando vi a convocatória de textos pro Dossiê 19 da Quarta Parede, achei uma ótima oportunidade de conversarmos sobre o processo artístico do Encantografar, que foi feito em um momento em que você ainda não era nossa curadora, e marca o tempo do cultivo das primeiras semeaduras do que hoje vem sendo o Celeiro. E como me interessa investigar formatos de textos, e a curadoria da revista é aberta a isso, propus um formato híbrido de troca de cartas e diálogo/entrevista sobre o Encantografar.
Vou fechando essa carta te imaginando nos voos que andas dando, nas andarilhagens que andas percorrendo. Adorei a proposição de enviarmos as cartas pelos Correios e tecer mais essa artesania da letra feita a mão e a letra digitalizada, o quanto isso também fala do tempo e da relação com o corpo. E como decidimos dar a “largada” das cartas sem combinar um tempo cronológico das ações de escrita, envio-te essas palavras num estado saboroso de espera pela sua correspondência pousar fisicamente em minhas mãos.
Beijinhos meus,
Aline
Vitória (ES), 26 de Agosto de 2022
Lua Minguante em Virgem
Chamado ao aperfeiçoamento
Minúcias, astúcias
Dissolvendo as ilusões, uma a uma
Querida Aline,
Essa carta vem enquanto degusto Encantografar – estado de verbo desconhecido, em atenção flutuante. Uma viagem onírica, me parece como invenção de mundos, co-criação de universos que se deseja habitar.
Tantas perguntas em meio a vozes e corpos que se misturam em imagens sobrepostas com a natureza – porque voz é corpo e é natureza – para criar uma terceira coisa, invisível por essência, porque se apresenta como sensação. O silêncio oferece alguma possibilidade de caminho sem garantias. Em certo momento, vozes ininteligíveis buscam uma outra língua, avançam em vocabulários.
As tantas bocas soltas no ar que afirmam coragem no lugar de calma e mastigam o agora como forma máxima de apreensão desse estado fugidio em essência. Mastigar, degustar, engolir o agora para devolvê-lo ao mundo, e n c a n t o g r a f a d o. Há uma antropofagia em curso.
Cronos em crânios, em rima ritmada, entre rótulos e feridas. Sem erros nem despedidas, batidas. Gozo perigoso ou rasas interpretações de nossas ilusões. Pés aterrados em Thonos, tempo inventado, soprando e engolindo esse mesmo ar que se renova sendo outro e outro e outro.
Beleza no que parece oposto, atento e sedento. PAUSA. Contratempo. Andar sobre pedras e nos trilhos. Errâncias…
Junto com os tempos, os elementos se tornam verbos. Aterrar, regar, soprar, brotar. Vem a pergunta: o pensamento veste que pele? Buracos cheios de dentro e vazios de fora. No trecho de ‘confluir’, uma voz que ouve em elementais – acreditar e brotar. O que está dentro de mim, afinal? Enquanto me pergunto, a rosa vermelha em riste me espanta.
Na carta derradeira de Kairós para Thonos me dizem para não ter medo de ser quem sou, o corpo sabe desde muito cedo, desde antes. Nascer para uma qualidade de tempo para além da carne, em escuta e atenção.
Para rompimentos, os estímulos, de seguir, de mover. Deixar a intuição passar na frente, deixar ela trabalhar. Por fim, cada semente tem o seu desejo. Nesta passagem, ofereço uma citação do Rabino Nilton Bonder no livro “O Sagrado”, quando fala das sementes junto às águas:
Não se trata apenas da semente e sua virtual capacidade de fazer nascer, mas do fato de estar nas cercanias de condições propícias para que isto possa acontecer. Conjugar possibilidades internas e externas é o que chamamos de bençãos. (…) A semente não faz nascer sem a vontade da água e nem tudo à nossa volta tem essa mesma vontade. A prosperidade está no casamento de vários potenciais. (…) A diferença sutil está na origem de onde brota – o desejo nasce na semente que quer germinar, a benção nasce na dádiva da água que encontra o potencial da semente e o desperta. (BONDER, 2007, p. 46).
Nesse encontro, abro aqui um diálogo contigo sem roteiros prévios, como tenho conduzido o podcast Conversa com Artista, que cria campo para interações sobre poéticas, escutas e processos de criação na arte. Também me serve como exercício curatorial de escuta, quando a minha fala é convocada a partir de silêncios. Te convido, assim, para esta pergunta que me aciona desde antes de assistir ao video performance: de onde vem o título Encantografar?
Aline Bernardi: No dia que gravamos o episódio do podcast com a minha primeira participação no seu Conversa com Artista[7], eu estava fazendo um passeio turístico no Morro do Pão de Açúcar com uma amiga mexicana, que queria muito conhecer essa paisagem única da minha encantadora cidade do Rio de Janeiro. Era um dia chuvoso e esse passeio me trouxe muitas memórias de infância, em especial do dia que fiz uma visita a esse cartão postal da cidade com a minha mãe, minha avó e minha bisavó. A sensação da memória desse encontro histórico ancestral dilatou minhas células e, enquanto os pingos de chuva tocavam minha pele, meu corpo todo vibrava uma alegria saudosa em conexão com minhas ancestrais que não estão mais encarnadas: a avó e a bisa. Ao chegar em casa, fui diretamente buscar a foto de nós quatro na entrada do Pão de Açúcar e fiquei algum bom tempo degustando aquela imagem. Esses são gestos encantográficos na minha percepção.
Nos primeiros meses de 2021, entre janeiro e março, ainda num momento bem intenso do isolamento social devido à pandemia do Covid-19, o Celeiro Moebius nascia durante a residência artística (imersiva e virtual) do Lab Corpo Palavra, que aconteceu através da premiação da Lei Aldir Blanc. Nesse momento, me senti convocada a oferecer às pessoas que integraram o projeto um caminho artístico e pedagógico que nos colocasse em um vínculo afetuoso, generoso, colaborativo, gentil, cuidadoso e humanitário, visto o desafio existencial que nossa espécie estava (e ainda segue) vivendo e segue, de alguma forma, vivendo. Ativar um campo de encontro coletivo com essa qualidade de vínculo é co-criar gestos de encantamentos que vão nutrir, regenerar e fortalecer as nossas subjetividades – são encantarias éticas, estéticas e políticas para sentirmos a abertura de mundos heterogêneos se constituindo em nossas corporeidades, nos âmbitos físico-corporal, cognitivo-sensorial, espiritual-cósmico.
A perspectiva do encantamento é elemento e prática indispensável nas produções de conhecimentos. É a partir do encante que os saberes se dinamizam e pegam carona nas asas do vento, encruzando caminhos, atando versos, desenhando gestos, soprando sons, assentando chãos e encarnando corpos. Na miudeza da vida comum os saberes se encantam e são reinventados os sentidos do mundo. (Simas e Rufino, 2018, pgs. 12-13).
As encantarias surgem quando corporificamos nossas presenças em terreiros ancestrais e coletivos, e reconhecemos com respeito e humildade a força de vida ancorada pelas grafias existenciais de tudo que nasceu e viveu antes de nós e de todo o ambiente vivo que pulsa conosco, enquanto aqui estamos nesta dimensão de partilha encarnatória. Por isso me chegou essa percepção de inaugurar um verbo, que é o encantografar, grafar, escrever nossos gestos e atitudes de encante. E o quanto ativar a escuta sensível para essa sutil ação encantográfica é abrir-se ao que em nós ainda é desconhecido, um estado de receptividade e abertura aos atravessamentos vibráteis, ao que não está pré definido e codificado, pois “há que se ler a poética para se entender a política, há que se ler o encanto para se entender a ciência” (Ibidem, p. 16). Me conte um pouco mais como você tem encantografado seu caminho como curadora e de que modo o Conversa com Artistas tem colaborado com a sua grafia existencial: Quero te ouvir.
Flavia Dalla: Muito bonito me deixar ser criada por esse verbo e criar junto. Me marcam as palavras partilha, vínculo, dimensão. Penso nessas pulsações que criam espaços vazios, onde interferimos e somos interferidas, dançamos e somos dançadas, criamos e somos criadas. Dou-me conta que o Conversa com Artista é esse encantamento completo pela vida e o seu fazer diário que nos atravessa. É preciso deixar-se um pouco, esquecer um pouco de si, das próprias vontades, do ego, para através dele permitir que a vida viva através de nós. A vida quer viver. É sim, um encantamento esse atravessamento.
O podcast nasceu sem um projeto e uma preparação aparente. Vem de um estado de presença que me apresenta a coisa pronta, assim como um bordado que vai sendo visto enquanto tecido. O processo é quase como um ritual: a escolha da artista, que geralmente me atravessa o corpo, ou em memórias ou em sensações ou em desejo de troca. Depois o contato e a sincronização das agendas pelo tempo cronológico, a minha, a da artista e do estúdio. Não há roteiros, nem envio de perguntas previamente. As artistas convidadas sabem e topam o improviso. Chego no estúdio, testo a voz (tenho gostado da textura da minha voz) e ligo para a convidada. A conversa se desdobra para caminhos que se revelam na medida em que inauguramos esse chão. Para mim, um exercício de silêncio e escuta. Como se a minha pergunta, provocação ou comentário só existisse a partir do encontro com a fala do outro. Uma trança, uma dança, uma encantografia em ato. Isso me lembra um trecho da Leda Maria Martins (2021), em Performances do Tempo Espiralar, quando diz: “formas pensamento que, ao se associarem, assim como as frases verbais ou musicais, são capazes de despertar e promover ideias ou ideações, isto é, movimento de ideias” (p.79).
Te envio no próximo email imagens de obras que me tocaram ontem na feira ARCA – da SP ARTE[8]. Elas encontrarão caminhos no nosso texto. Para seguir, tenho uma curiosidade, como você sente que é criar para a tela? Encantografar essa performance em vídeo.
Aline Bernardi: As poéticas da tela, para a tela, com a tela, me friccionam na questão de como construir uma relação entre presença encarnada/pele suada e presença virtual/luminosidades pixeladas. A minha relação com a escrita sensória, performativa, cartográfica, já diz um tanto disso: o quanto trago a superfície da pele e do papel para tecer as tramas vibráteis de uma fisicalidade do verbo (vide a nossa proposta de iniciar esse texto fazendo uma troca de cartas escritas à mão e enviadas pelos Correios). A imagem com a tela é algo que me aproxima quando esta abre poros e vaza sensibilidade, quando a imagem nos faz sentir mais conexão com a potência vital do estar viva na dimensão carnal.
A era da representação vem à baila definitivamente com a chegada da Cultura Digital em virtude dos novos conhecimentos que esse período promulgou colocando o código como matéria-prima e como produto principal de produção. Com isso, (quase) qualquer corpo pode ser transformado em pura informação, em códigos binários, em dígitos que são re-elaborados, re-arranjados, manipulados, alterados para outras condições e configurações. (…) Acredito que a importância nessa reflexão é tentar compreender o que mudou quando passamos para o mundo dos códigos. Considero que uma das respostas está direcionada ao confronto entre visibilidade e invisibilidade. Tal metáfora aponta para o contínuo enfrentamento entre estado/sociedade, poder/cultura. (…) A cultura digital trouxe a possibilidade de verter (quase) tudo em dígitos, em codificação binária que pode transformar praticamente qualquer corpo em material informacional. (SANTANA, 2022, pgs. 117-118).
Ivani Santana é uma das artistas-pesquisadoras brasileiras mais reconhecidas em sua contribuição com as reflexões e debates em torno do corpo, da arte e das mediações tecnológicas, tensionando essa perspectiva de arte representacional codificada através da Cultura Digital. Estou tendo a oportunidade de vivenciar um processo de criação artística[9] em dança com a direção de Ivani, a partir das temáticas feministas, de modo que a mediação com a tecnologia permite configurações e percepções sensíveis entre as presenças de mulheres robóticas, cibernéticas, digitais e biológicas. Esse processo está apenas iniciando e percebo o quanto ele vai me ajudar a digerir alguns incômodos que tenho na relação com a Cultura Digital, como a capitalização das subjetividades ou atitudes que valorizam a distorção ética nas redes sociais.
Trago toda essa contribuição de Ivani Santana, pois, diante de minhas inquietações com a representação codificada da imagem digital, e a partir do contexto pandêmico, a busca de criação poética para e com as telas se deu na experimentação sensorial e no vínculo com a pele-carne e suas aflições e dores dentro do contexto de isolamento social. Percebi o quanto era vital aprendermos a tecer afeto e oferecer cuidados através das telas, pois estas se tornaram nosso ponto de contato, nossa via sensível para criação de vínculos afetuosos, de confiança e suporte à nossa sobrevivência. Assim, o processo de gestar e compartilhar gestos encantográficos foi se dando na medida que nos abrimos para a escuta de si e do coletivo. Um mote de criação que considero ter sido precioso foi convidar as 33 pessoas (de diferentes estados do Brasil), que integraram esse percurso, para plantar uma semente, de alguma árvore, por semana. O que aconteceu foi que a maior parte das pessoas plantaram mais de uma semente por dia, além de outros gestos como: presentificar alguém com uma árvore que você havia plantado e cultivado, ou ainda, enviar por correios sementes de casca dura e ensinar a germiná-las.
A minha escolha enquanto direção e concepção artística da videoperformance Encantografar: estado de verbo desconhecido foi viabilizar a proximidade afetiva e os gestos de autocuidados e cuidado coletivo, buscando co-criar uma ética relacional de regeneração humanitária. O que me comove é perceber que os vínculos se deram de tal maneira que até hoje, 1 ano e meio depois da estreia do video, as pessoas seguem se encontrando, se falando, desdobrando amizade e parcerias artísticas. Aqui no Brasil, me vinculo e ressoo com todo esse movimento de reconexão com a ancestralidade, e o quanto tem sido insurgente esse espaço de difusão das poéticas culturais da cosmovisão dos povos originários. Essa via da ancestralidade toca em re-conexões com as nossas sabedorias manuais e artesanais, e isso me nutriu muito também nas escolhas de proposições para compor e deixar emergir performatividades sensoriais do Encantografar.
Recebi algumas fotos de sua tão recente ida a feira ARCA (SP ARTE), e muitas dessas imagens me remetem à essa busca ancestral. Aqui no Brasil, percebo as materialidades orgânicas sendo evocadas, desejadas, artesaniadas. Como você percebe essas poéticas entre telas se dando no Brasil? Ah, querida, e me conte um pouco como foi a viagem na Alemanha e a Expo Documenta[10]. Na Europa, a partir dessa recente viagem que você fez, o que você percebeu dessa relação entre arte e tecnologia?
Flavia Dalla: As questões da imagem e da sua relação midiática me tocam em alguns pontos. Você fala da sua preocupação sobre a excessiva representação codificada da imagem digital e sobre como você contorna o momento pandêmico para criar campo ressonante para afetividades através do autocuidado coletivo. É bonito sentir que é através do comum que conseguimos o que você bem nomeia como uma “ética relacional de regeneração humanitária”. Isso é de uma profundidade que me comove. Sinto que a relação curadora/artista e tantas outras do mundo que queremos viver é pautada por essa lógica. A Marisa Flórido, pesquisadora de arte, trata de alguns pontos interessantes sobre a imagem, e gostaria de trazer uma breve citação dela para refletirmos:
As imagens estão a meio caminho das coisas e dos sonhos, num entre mundo, nu, quase-mundo, onde se enfrentam talvez nossa servidão e nossa liberdade. ‘Indecisas e indecidíveis’, não produzem evidência ou verdade. Não substancial, seu estatuto é ambivalente. A liberdade em face às imagens necessita de um olhar crítico que os coloque em relação. Ver junto não é partilhar a visão de algo, mas a invisibilidade de um sentido sempre fugaz: ‘não se partilha o visível sem construir o lugar invisível da própria partilha.’ Ela demanda a palavra, o apelo e o envio dos olhares, que se encontram pelas imagens. A economia do visível, esse tecido de olhares e palavras, é uma escolha política, aquela partilha do amor e dos ódios, a partilha de um mundo comum. (FLÓRIDO, 2009, p.36).
Também são vários os gatilhos que me colocam a refletir sobre essa relação do corpo no campo binário da tecnologia. Rendê-lo à lógica da informação seria sistematizar sua despotencialização, ao passo que a insistência é a criação e manutenção do corpo em experiência, essa que passa ao largo de definições e conclusões, mas que se instaura em claves do indizível, no toque de um com o outro. E isso, ao meu ver, pode ser feito através, com e para a tela, assim como o processo artístico pedagógico do Lab Corpo Palavra, e a criação do Encantografar nos mostram.
A viagem foi intensa. Exigiu muito de mim, mental e fisicamente. Eram maratonas diárias. E a partir daí, a Documenta de Kassel[11] me deslocou internamente, a ponto de eu não saber se estava gostando do que via ou não. Imagens ambivalentes, que me convocavam para um deslocamento, um desconhecido, uma desconstrução. A começar pela proposta curatorial que não estava centrada numa pessoa, mas num coletivo, o Ruangrupa, de Jakarta, Indonésia. Pelo conceito de lumbung, expressão comum no meio agrário indonésio, que significa estocagem e administração coletiva da colheita. A Documenta Fifteen foi concebida a partir desses desdobramentos – outros coletivos foram convidados para ocuparem os diversos espaços expositivos, inclusive igrejas, sendo a maioria baseados em países do sul global. Estamos falando aqui de criação colaborativa, diluição da autoria, questionamentos sócio-políticos intensos, além da pergunta “onde está a arte?”, “quem é o artista?”, de coletivos que vieram do Haiti, Bangladesh, Palestina, Indonésia.
Penso que agora passamos à costura. Esse toque de quatro mãos para criação de algo para além de nós.
Vamos?
Lua Nova em Virgem
Rio de Janeiro, entre dias de sol e noites de frio
primeiro dia do mês de setembro, aquele mês que prenuncia a chegada da primavera
Querida Flavia,
Essa desembocadura da trama tecida nos contornos do Conversa de Artista, onde você traz a sua experiência desassossegante com o Documenta Fifiteen, me chama a fazer uma dobra para um tom de carta, como uma proposta de pouso deste texto para o Dossiê 19 da Quarta Parede. E aqui as perguntas que você levantou me sacodem as células: onde está a arte? quem é o artista? a partir da perspectiva da criação colaborativa, da curadoria assinada coletivamente.
Sou e continuo sendo uma pessoa inclinada aos coletivos, ao gesto de precisar ser coletivizada, por sentir que a existência é coletiva e relacional. Sou filha única por parte de mãe e tenho uma irmã por parte de pai, que nunca morou comigo; minha família é pequena e muitas pessoas já não estão mais na dimensão encarnada. Mesmo com esse contexto familiar, sempre pulsou em mim a sensação de ser-com as pessoas e os outros seres que compartilham essa experiência do estar-viva. Meu processo de subjetivação se faz constantemente pelo desejo de alianças coletivizadoras, como modo de co-criar e co(n)-fiar os vínculos entre seres da mesma espécie e seres de espécies distintas, honrando e respeitando os saberes de cada célula viva que habita e compõe esse planeta, dentro de uma ética cósmica, uma sintonia que vibra com a sabedoria coletiva dos povos originários.
Essa experiência de uma consciência coletiva é o que orienta as minhas escolhas. É uma forma de preservar nossa integridade, nossa ligação cósmica. Estamos andando aqui na Terra mas andamos por outros lugares também. A maioria dos parentes indígenas faz isso. É só você olhar a produção dos mais jovens que estão interagindo com o campo da arte e da cultura, publicando, falando. Você percebe neles essa perspectiva coletiva. Não conheço nenhum sujeito de nenhum povo nosso que saiu sozinho pelo mundo. Andamos em constelação. (KRENAK, 2020, p.39).
Nesse sentido, a prática de direção artística que me interessa experimentar é baseada em uma ativação de escuta sensível relacional dos seres que estão se envolvendo em torno de alguma proposta artística e pedagógica. Assim, o percurso de tecer a direção artística do Encantografar se deu nessa prática de uma escutatória vibrátil, buscando oferecer visibilidade e espaço expressivo para as potências singulares em conexão colaborativa com o que estava pulsando coletivamente.
E daí que quando me deparo com a pergunta “onde está a arte?”, percebo a arte se fazendo continuamente nas tramas da vida, nessa co-criação de uma ética coletiva e relacional em prol de uma regeneração humanitária. As encruzilhadas da vida-arte-vida movendo elos colaborativos entre seres que compartilham a condição de estar vivo. E logo esbarro na outra pergunta que você ressoou entre nós: “quem é o artista?” – talvez uma natureza mutante que se veste de muitas peles enquanto colabora com a vitalização dos percursos de criação de si no estar-com o mundo. Subjetividades inquietantes e diversas, que se dobram e se desdobram em múltiplos modos de convivência. Pessoas que contam histórias e encantografam suas existências, tal qual a experiência mágica de suspender o céu da cosmovisão indígena.
Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades – as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. (KRENAK, 2019, p. 33).
Essa fala do Krenak é tão fantástica e criteriosa. E ela me inspirou na proposição artística desse gesto coletivo de encantografar o estado de verbo desconhecido que é a condição de estar vivo. Uma prática cartográfica de (re)existência e de regeneração que compartilhamos nesses anos agudos de travessia pandêmica. Nosso modo de co-criar gestos de cuidado de si e do coletivo. Uma memória viva em nossas células.Toda vez que converso sobre essa poética inventada na videoperformance, me nutro dos vínculos, das amizades, das parcerias, das alianças que esse processo de criação trouxe para compor essa constelação de pessoas e lugares na partilha existencial.
Essa nossa conversa dá visibilidade às escolhas éticas, estéticas e políticas que venho me afinando e revelam as tessituras e materialidades de chãos que estamos co-criando no selo artístico Celeiro Moebius. Ao caminhar nessa construção do Celeiro, sinto-me pisando um chão de terra batida, e alcanço as nuvens com a poeira nos pés.
Grata por essa conversa,
um abraço caloroso
um beijo estalado
e que alegria sentir nossas mãos dadas
Aline
Referências
Livros, Artigos e Dissertações
BERNARDI, Aline de O. Lab Corpo Palavra: correspondências moébidicas entre poéticas cartográficas. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2021.
BONDER, Nilton. O Sagrado. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
FLÓRIDO, Marisa. A Ambivalência da Imagem. In: DABUL, Lígia; SIMÃO, Luciano Vinhosa. Poiésis: n. 13, V1. Niterói: PPGCA/ UFF, 2009.
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
_____________. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
MARTINS, Leda M. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
Rolnik, Suely. Esferas da Insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018.
SANTANA, Ivani. De corpo presente na dança digital distribuída em rede. ARJ – Art Research Journal: Revista de Pesquisa em Artes, [S. l.], v. 1, n. 2, p. 125–143, 2014. DOI: 10.36025/arj.v1i2.5370. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/article/view/5370. Acesso em: 18 jul. 2022.
SIMAS, Luiz A; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.
Sites e Vídeos
Encantografar: estado de verbo desconhecido (videoperformance). Disponível AQUI
Cadernos Selvagem. Disponível AQUI
Podcast
Conversa de Artista. Disponível AQUI
Moebius. Disponível AQUI
Notas de Rodapé
[1] Celeiro Moebius é um selo artístico, espaço coletivo para encontros que dialogam com a perspectiva cartográfica, performativa e sensória do Lab Corpo Palavra. Moebius pois as nossas peles se tocam e se reconhecem enquanto fronteiras móveis, trânsitos múltiplos de fluxos, sensações e imagens, criando convergências híbridas e plurais na via da arte relacional. Um celeiro de nutrição, germinação e abrigo de artesanias, alfaiatarias e andarilhagens poéticas, em escuta rítmica com a trama da vida-arte-vida.
[2] O Lab Corpo Palavra vêm se constituindo como uma abordagem ética-estética-política que integra ensino, pesquisa e criação mobilizando a experimentação de escritas cartográficas, sensórias e performativas. Uma prática laboratorial que estimula a investigação dos movimentos e das motricidades em torno da relação corpo e palavra, oferecendo dinâmicas que convidam à uma prática de modulação das conectividades entre presença corporal, qualidades de movimento e produção-processo de (des)conhecimento. O que se pensa quando se move? Qual a implicação do corpo durante o ato de escrever?
[3]Atualmente temos 3 núcleos artísticos no selo Celeiro Moebius, que é dividido pelos territórios de moradia dos artistas: Rio de Janeiro/RJ (6 artistas), Salvador/BA (3 artistas), Serra do Cipó/MG (1 artista) e Vitória/ES (1 artista).
[4]O período pandêmico ao qual estou me referindo é relativo aos 2 primeiros anos da pandemia Covid-19 no Brasil – 2020 e 2021.
[5] A residência artística Lab Corpo Palavra: coreografias e dramaturgias cartográficas foi realizada de modo totalmente virtual, no período de janeiro a março de 2021, com uma programação ampla de aspectos pedagógicos e artísticos, oferecendo palestras, aulas e processo de criação artística, para um grupo de 33 artistas pesquisadores de todo o Brasil. Ao final do percurso, realizamos uma Mostra Artística aberta ao público, compartilhando as criações realizadas, entre elas a videoperformance Encantografar: estado de verbo desconhecido.
[6] A Lei Aldir Blanc, de autoria de Benedita da Silva e tendo Jandira Feghali como relatora, foi uma política emergencial de extrema importância para a sobrevivência dos trabalhadores da cultura. A Lei 14.017, também conhecida como Lei Emergencial de apoio à cultura, foi criada em junho de 2020 para reduzir o impacto que as medidas restritivas de isolamento social, em razão da pandemia Covid-19, gerou nas atividades do setor cultural.
[7]Podcast Conversa com Artista – Flavia Dalla com Aline Bernardi. Disponível AQUI
[8]Feira comercial da franquia da SP ARTE, criada no contexto pandêmico, que acontece na Marginal Pinheiros , todo mês de agosto.
[9] O processo de criação é a montagem do espetáculo de dança As Histórias de @EvaMariaGeni, que foi contemplado pelo Prêmio Funarj de Dança, e tem estréia prevista para dezembro de 2022 nos teatros João Caetano e Armando Gonzaga, ambos na cidade do Rio de Janeiro.
[10] DOCUMENTA FIFTEEN: A Documenta de Kassel é uma evento de arte contemporânea que acontece a cada 5 anos, desde 1955, na cidade de Kassel, na Alemanha. Nesta 15ª edição, a curadoria foi assumida pelo coletivo indonésio Ruangrupa, fundado em 2000 em Jakarta, que a partir dos princípios da lumbung, expressão comum no meio agrário indonésio pressupõe a estocagem, administração e partilha da colheita de maneira coletiva. Desta forma, o coletivo desdobrou a curadoria para ocupação dos espaços da Documenta a outros coletivos, que por sua vez delegou a outros coletivos convidados, criando uma rede de autoria difusa e horizontal de artistas baseados em países do sul global como Haiti, Cuba, Palestina e Bangladesh. Saiba mais AQUI
[11]DOCUMENTA FIFTEEN: A Documenta de Kassel é uma evento de arte contemporânea que acontece a cada 5 anos, desde 1955, na cidade de Kassel, na Alemanha. Nesta 15ª edição, a curadoria foi assumida pelo coletivo indonésio Ruangrupa, fundado em 2000 em Jakarta, que a partir dos princípios da lumbung, expressão comum no meio agrário indonésio pressupõe a estocagem, administração e partilha da colheita de maneira coletiva. Desta forma, o coletivo desdobrou a curadoria para ocupação dos espaços da Documenta a outros coletivos, que por sua vez delegou a outros coletivos convidados, criando uma rede de autoria difusa e horizontal de artistas baseados em países do sul global como Haiti, Cuba, Palestina e Bangladesh.